Doença
absolutamente cruel e silenciosa.
Vai chegando
de mansinho sem que possamos identificá-la, como um ladrão vil que rouba o bem
mais importante do ser humano: a identidade.
Sem identidade
o nosso ente querido parece perder junto sua dignidade, seus valores, suas
convicções.
É um roubo
lento e quase imperceptível, pois principalmente no mundo em que vivemos hoje,
nos restam muito pouco tempo para percebermos mudanças tão sutis como pequenos
lapsos de memória.
Afinal, quem
nunca se deparou em frente a um armário tentando lembrar o que teria ido buscar
ali?
E assim, com
um lapso aqui e outro ali, o nosso ente querido parece ir vagarosamente
desligando seus circuitos internos, distanciando-se a cada dia da realidade, da
rotina do dia a dia.
Quando nos
damos conta, o nosso ente querido já foi quase que totalmente embora de nossas
vidas, restando apenas ali um corpo humano que outrora tanto participou, lutou,
opinou, trabalhou, amou a todos.
O pior desta
triste lembrança é o sentimento de culpa que nos acomete por não termos
percebido os detalhes do início dessa doença, apenas verificamos o quanto fomos
intolerantes, impacientes quando o nosso ente querido teimava em não tomar
banho, em esconder as coisas, em dizer que roubaram suas coisas, e, naqueles
momentos achávamos que era apenas uma simples caduquice ou implicância da
idade. Mas não, era esse “criminoso” invisível e silencioso que já havia
chegado e se instalado sem que tivéssemos percebido.
Daí para
frente, a doença é cada vez mais cruel, pois tira do paciente toda a sua
autonomia, e nós, aqueles que convivem com o paciente, sofremos junto por não
ter mais nada a ser feito. É como se algo misterioso chegasse e sugasse a alma
do seu ente querido, deixando apenas um corpo vazio.
É necessário
que tenhamos muita compreensão, muita paciência, muita dedicação e, sobretudo
muito amor para convivermos com a realidade de um paciente portador do mal de
Alzheimer.
Existe uma
fase intermediária entre o principio da doença (que não sabemos localizar precisamente)
e a fase final, que é uma fase onde o paciente muitas vezes fica bastante
agressivo quando contrariado, e esse é mais um momento muito difícil, pois não
acreditamos que aquela pessoa antes tão equilibrada seja capaz de atitudes tão fortes,
tão violentas. Parece mesmo um pesadelo, parece que o nosso paciente está
ficando louco e tentamos com toda a nossa ignorância repreendê-lo como a uma
pessoa normal, e de nada adianta, pois essa viagem não tem mais volta... é só
de ida.
Na fase mais
agressiva da doença, o paciente já não quer se alimentar, já não consegue se
locomover direito, já não consegue fazer sua própria higiene pessoal, e muitas
vezes ocorre o que aconteceu com minha mãe, que tivemos de colocar uma sonda
diretamente no estômago para que ela fosse alimentada.
Foram momentos
terríveis no hospital quando da internação para o procedimento da gastrostomia.
Tive que presenciar minha mãe em ataques extremos de loucura, tendo que ficar
imobilizada na cama para que não arrancasse a sonda e sendo medicada como uma
pessoa deficiente mental e agressiva... foi lamentável.
Unido a tudo
isso fomos percebendo a falta de estrutura que existe por parte de médicos,
enfermeiros e auxiliares de enfermagem no trato com pacientes idosos e
portadores do mal de Alzheimer. Não existe de fato o carinho pelo paciente... não
existe.
Principalmente
os enfermeiros e auxiliares não sabem como lidar com o paciente. Pensam que são
todos iguais e tomam atitudes e têm comportamentos iguais como se todos fossem
um só. Isso é inadmissível, pois dentro de nosso juízo perfeito sabemos que
cada ser humano é um só embora possa haver comportamentos idênticos. Mas isso
não quer dizer, por exemplo, que sempre ao chegar junto ao paciente, o
enfermeiro ou auxiliar tenha que falar tão próximo ao ouvido do paciente e tão
alto, supondo que todos os idosos são surdos.
Tive muitos
aborrecimentos em todas as vezes que minha mãe esteve internada. Raros, muito
raros são aqueles profissionais que sabem lidar com um idoso e principalmente
se este for um portador do mal de Alzheimer.
Acredito muito
fortemente que um passo que iria melhorar muito essa relação com o paciente,
seria se os profissionais de saúde escutassem os parentes do paciente, se
ouvissem atentamente e dessem a importância necessária para seus comentários,
observações e queixas, Os parentes conhecem muito melhor o paciente do que os
profissionais de saúde, que apenas conhecem a parte técnica. Acredito mesmo que
a união da técnica com o conhecimento do paciente através do seu parente surtiria
um efeito muito melhor e muito menos doloroso para todos, afinal é a nossa mãe
que está sendo tratada como um número e não como um ser humano.
Minha mãe vivia
completamente dependente de nós para tudo já que não se alimentava sozinha e
sim pela sonda, não se locomovia, não falava, não reclamava, não conseguia se
coçar (!). Passava a maior parte do tempo deitada ou sentada no mais profundo
silêncio... é muito triste pois busquei em sues olhos onde ela estava escondida
e não a encontrava. Algumas raras vezes seus olhos passavam pelos meus e sentia
um pequeno lampejo de alegria e de reconhecimento, mas isso não durava mais do
que segundos.
Fisicamente
ela estava conosco, mas, espiritualmente eu realmente não sabia por onde ela
andava. Por mais que a buscasse, não a encontrava, a não ser nas minhas
lembranças tão fortes de quando ela era a pessoa ativa, determinada,
justiceira, forte, de caráter tão correto... e, nessas horas em que ficava ao
seu lado lembrando de como ela era e o que fazia, sentia uma angustia grande
por não ter aproveitado melhor enquanto ela ainda possuía sua própria
identidade.
É uma doença
cruel, mas é também um instrumento de lição de vida para todos que passam por
ela. É apenas uma pena que saibamos tão pouco a respeito do mal de Alzheimer e
que nunca estejamos preparados para enfrentá-la no seu mais discreto sintoma.
Minha grande
esperança é que o estudo sobre a doença seja cada vez mais aprofundado, não só
pelo aspecto da pesquisa de sua cura, como também pelo lado psicológico e
humano para que as pessoas da área de saúde aprendam a lidar melhor com os
pacientes e saibam levar a tranqüilidade e o conforto aos parentes de um
paciente portador desta doença.
2 comentários:
Emocionante e doloroso... Aos que tem olhos e ouvidos, reflitam.
Só nós sabemos como é o processo não é mesmo????
Para entender as pessoas precisam, ou passar, ou buscar o conhecimento.
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